Nossos leões urbanos
Nunca fui muito bom em ficar preso em casa. Então, após alguns meses trancados em quarentena, eu e minha esposa decidimos aproveitar que tínhamos a oportunidade e passar uma temporada fora do RJ.
Após 4 meses vivendo fora do caos urbano que chamo de lar, veio a vontade de me mudar. Trabalho remoto havia se tornado uma realidade. Estava menos estressado. Percebi que a sensação de que precisava do agito da cidade, dos cinemas, bares, restaurantes… que nada disso valia o estresse.
Mas aí senti que algo faltava no cenário bucólico onde me encontrava. Não estava ainda claro o que. Mas o que estava claro é que precisava entender e ressignificar a minha relação com o cotidiano corrido que vivia. Ou abandoná-lo de vez.
Imagine-se em uma savana. De trás dos arbustos à sua frente sai um leão. Você pode correr ou lutar. Independentemente disso, uma coisa você sabe. Seria bom ser mais forte, mais inteligente, mais rápido nesse momento. E nossa evolução nos atendeu nesse desejo.
Situações de estresse como essa nos fazem secretar hormônios como a adrenalina ou o cortisol que nos põem em estado de alerta, aceleram nossos batimentos cardíacos, circulam nosso sangue mais rápido. Porém, hoje em dia, a grande maioria da população mundial não vive prestes a ser morto por leões na savana.
A mesma sensação que teríamos ao ver uma fera é a que temos ao ir fazer uma prova, falar em público ou ir a uma entrevista de emprego. E no entanto, a probabilidade de você ser devorado em qualquer uma dessas situações é extremamente baixa. O problema é que criamos nossos leões urbanos. Só que nesse caso, eles não aparecem ocasionalmente. Eles estão à nossa volta. O tempo todo.
Os hormônios secretados durante um instante de estresse não foram feitos para permanecer em nossa corrente sanguínea por anos a fio. Mas ao nos expormos continuamente a situações que criamos enquanto humanidade e parecem nos pôr em risco, mantemos esse sinal de alerta ligado o tempo todo. As consequências são uma série de doenças causadas pelo estresse crônico que desregula completamente o equilíbrio de nosso corpo. A realidade é que não sabemos lidar com nossas próprias criações. Mais do que isso, simplesmente não somos biologicamente capazes.
A evolução de nossas abstrações é infinitamente mais rápida que a evolução de nossos cérebros desenvolvidos lentamente ao longo de milhões de anos. E isso nos confunde. Gera algumas bizarrices inclusive.
Estudos mostram que ao expor pessoas a cheiros ruins, estas tendem a demonstrar visões de mundo mais conservadoras sobre temáticas sociais (no estudo a temática tratada era a opinião sobre união entre pessoas do mesmo sexo). Em nossa racionalidade, não há correlação lógica entre os dois fatores. Porém, nosso cérebro não evoluiu pra ser capaz de distinguir entre o que é o nojo de um odor do desprezo por um humano considerado diferente. Ou ainda, pessoas com fome tendem a ser mais liberais em sua forma de responder sobre sua visão de questões sociais. Novamente, é nosso condicionamento biológico falando que seria bom ter uma sociedade que coopera para que possamos nos manter vivos. Tchau pra racionalidade…
Para lidar com nossa incapacidade de gerenciar nossos sentimentos em um mundo com excesso de estímulos, criamos mais abstrações. Nós evoluímos para conviver com grupos de até 150 pessoas. Sociedades que começam a formar grupos maiores passam a criar os chamados deuses moralizadores (o Antigo Testamento está aí pra nos lembrar de se comportar). São criações nossas para nos forçar a viver de forma cooperativa em sociedade.
Mais recentemente, o nível de complexidade chegou a níveis tão absurdos que, simplesmente não somos capazes de entender fenômenos como a nossa própria economia. Então terceirizamos a compreensão desse universo complexo para algoritmos que cospem respostas que seriam impossíveis para humanos calcularem. Nem conseguimos mais entender algoritmos que regem as nossas vidas.
Já em um viés mais material, para regular os desequilíbrios que geramos, nos voltamos para a química dos antidepressivos e ansiolíticos. O consumo desses aumenta ano a ano. Enquanto uma indústria prospera, nos sentimos mal por tomarmos remédios que são para muitos o que nos permite viver no mundo louco que, sem entender muito bem como, criamos. E continuamos nos punindo dia após dia.
O autor sul coreano Byun-Chul Han nos fala sobre a sociedade do cansaço. Nosso mundo nos exige tanto que sejamos cada vez melhores, a melhor versão de nós mesmos, que nos faz sentir fadiga só de existirmos. Afinal, existir não basta, há de se transcender. O resultado é a exaustão.
E o que dá pra fazer então já que nos colocamos nessa situação?
Bem, poderia dizer que, enquanto sociedade deveríamos dar uns passos atrás, voltar a um tempo mais tranquilo e relaxarmos. Mas além da dificuldade prática em se colocar todos na mesma página sobre como devemos abandonar nosso pretenso conforto moderno, há o fato de que buscar ir além nos permitiu uma saúde mais avançada, alimentação para mais pessoas e uma fonte inesgotável de conhecimento. Então como podemos lidar com essa existência super estimulada no qual estamos imersos? Robert Sapolsky descreve em seu livro “Por que as zebras não tem úlceras” quatro modificadores de nossas reações ao estresse:
- Um senso de previsibilidade e controle
- Válvulas de escape
- Uma percepção de que a vida está melhorando
- Suporte social
Vou descrever um pouco sobre como tenho buscado lidar com esses alguns desses modificadores e, mesmo como ansioso, regular pouco a pouco minhas emoções.
Primeiro precisei me convencer de algo difícil. Força de vontade é algo superestimado. Muitas pessoas leriam essa frase como saindo de um derrotado. Adoramos casos absurdamente incomum de pessoas que saem de situações complexas para serem bem sucedidas. E criamos portanto prisões morais pretensamente meritocráticas que nos fazem sentir que estamos sempre devendo.
Mas o mundo é muito mais regulado pelo acaso do que buscamos nos convencer. Ao não compreendermos que a maior parte de nossas ações são geradas por elementos completamente fora de nosso controle como genética, criação, recursos disponíveis, não somos capazes de construir o contexto que nos permitirá viver de forma razoável na complexidade da existência super estimulante de sociedades formada por milhões de desconhecidos.
Precisei, portanto, pensar em qual é o contexto apropriado para minha vivência. Achamos que sabemos o que precisamos para sermos felizes. Porém, aposto que você se surpreenderia com um simples exercício. Passe uma semana anotando, de 1 a 5, todos os dias, uma vez de manhã e outra à noite, como você está se sentindo. Acompanhe isso com anotações sobre o que você fez no dia. Leia e releia.
Eu faço isso (usando o Daylio, um aplicativo) todos os dias há 3 anos. A autocompreensão sobre os grandes efeitos sobre seu humor de pequenas ações em meu cotidiano me permitiu ir moldando meu entorno e meus hábitos para me colocarem em uma situação mais estável. Desde os hábitos óbvios como fazer exercícios e dormir bem, até os efeitos do álcool e o fato de que sei que se tiver que lidar com burocracia meu dia será ruim, os aprendizados são contínuos.
Como descrito, um dos grandes elementos para a modificação de nossas respostas ao estresse é termos um senso de previsibilidade e controle. Outro é ter válvulas de escape para o estresse. Essa sensação de previsibilidade deve ser fabricada como parte de uma rotina estruturada com o acréscimo de válvulas de escape deliberadamente colocadas como parte do cotidiano.
Mesmo assim, sei que de vez em quando minha rotina será perturbada. Por exemplo, mesmo sabendo sobre o mal que me faz burocracia, eu não consigo evitar 100% lidar com isso mesmo que não faça parte do meu dia a dia. Mas sabendo com antecedência sobre os efeitos dessa quebra no meu cotidiano, consigo regular muito mais meu humor.
Outra das formas de melhorar sua relação com o estresse é uma sensação de que sua vida está melhorando. No meu caso, escrevo textos como esse como forma de mostrar a mim mesmo que estou lidando com minhas inseguranças, sofrimentos e dificuldades. Escrevo ainda todo dia pelo menos 5 coisas pelas quais sou grato e guardo ao menos uma foto por dia de algo incrível. Isso me ajuda a refletir ocasionalmente sobre o que tenho conseguido construir e como tenho amadurecido. Sem esse feedback a nós mesmos, é fácil nos sentirmos estagnados. Um tapinha nas próprias costas nunca faz mal…
Ressignificar nossa relação com o estresse também faz parte do processo. A psicóloga Kelly McGonigal nos mostra em suas pesquisas que a compreensão do estresse como algo positivo que nos prepara para fazermos o que precisamos melhor, molda as reações de nosso corpo e nos permite, inclusive, viver mais. Mais uma psicóloga, Lisa Feldman corrobora essas ideias ao demonstrar como nossas emoções são fundamentadas em uma relação de feedback contínuo entre as sensações que nosso corpo nos passa (como velocidade da respiração, batimentos cardíaco e tensão muscular, o que chamamos de interocepção) e nossas crenças sobre o que está ocorrendo em nosso entorno.
Ao estudar sobre a temática, vou convencendo meu cérebro que o estresse não é meu inimigo. Entendo o funcionamento de minhas emoções. E portanto, sinto-me mais preparado para lidar com elas. E ao reforçar essa evolução, me sinto em um caminho de melhoria.
Mas se tem uma coisa que todos os estudos demonstram continuamente, é a necessidade de suporte social. Precisamos nos cercar das pessoas certas. Um estudo particularmente famoso é o Estudo sobre o Desenvolvimento Adulto de Harvard que segue 724 pessoas pelos últimos 75 anos. As pessoas que vivem mais tempo e mais saudáveis são as que investiram em suas relações com a comunidade em seu entorno, com amigos e família. Ao mesmo tempo, os efeitos de estar exposto continuamente a pessoas tóxicas têm efeitos deletérios à saúde e bem estar físicos. Ou seja, escolha bem suas companhias.
Esse é o paradoxo de nossas sociedades ditas modernas. Estamos sempre, a todo tempo, cercados de pessoas. As redes sociais e sistemas de comunicação nos permitem estar conectados 24 horas por dia. Podemos nos mudar, viver aonde quisermos, conhecermos quem quisermos. E no entanto, estamos cada vez mais sozinhos. Porque esquecemos que relações precisam ser construídas e cultivadas. Precisamos nos esforçar para criar um contexto social de suporte. A principal arma no combate ao estresse é algo que sempre esteve lá e relegamos a um segundo plano. Pessoas. Aquelas que realmente estão lá para você.
Lembrei o que estava faltando na minha utopia idílica rural. Meus amigos. Minha família. Suporte social.
Seria ótimo ter nascido em um ambiente naturalmente menos estressante. Mas não tive essa sorte. E, ao refletir sobre viver nesse contexto mais pacífico, mas isolado daqueles que me fazem bem, sem as relações de suporte emocional que me ajudaram ao longo de minha vida toda, entendi que tinha uma escolha difícil. Mas sabia a resposta. As leituras só me reforçaram a minha decisão.
Nunca digo nunca. Pode ser que um dia mude de opinião. Que busque construir uma vida em um contexto mais tranquilo. Mas, provavelmente, terei que carregar um pessoal comigo. Alguém aí querendo criar uma sociedade alternativa?
Pra quem quiser estudar mais sobre o tema, algumas opções
- Robert Sapolsky: Por que as zebras não tem úlceras: livro e aula
- Robert Sapolsky: todas as suas aulas em Stanford
3. Lisa Feldman: livro How Emotions are Made e Você não está à mercê de suas emoções (TED)
4. Kelly McGonigall: Como fazer do Estresse um amigo (TED)
5. Byung-chul Han: Sociedade do Cansaço