Construindo-me com quadrados e círculos
Ao longo de minha vida, julguei-me por parâmetros de terceiros. Mesmo que, racionalmente entenda que esta não é a melhor forma de alcançar a felicidade almejada, meu treinamento, como provavelmente o seu também, foi para seguir mecanismos de mensuração incompletos. Entenda, sou completamente viciado em dados, indicadores, enfim… minha questão não é com sua existência. E sim com a interpretação que fazemos deles. É com isso que tenho buscado lidar ultimamente.
Tenho buscado entender que sou formado por diferentes facetas: amigo, marido, irmão, filho, profissional…com todos seus sucessos e fracassos. Cada uma dessas facetas faz parte de um único ser. E é essa compreensão que me permite ponderar quais elementos quero concatenar para formar quem sou, quais preciso modificar e aonde quero chegar. É essa compreensão que me permite me apropriar de minha própria história.
Minha interação com minha história, até a primeira vez que participei de um processo seletivo, era de um passageiro. Vivia, ouvia o que falavam de mim, absorvia. As únicas ações que tomava eram para defender um parâmetro numérico específico: minhas notas. Para isso, estudava. Afinal, destacavam meus resultados acadêmicos de forma positiva. Portanto, precisava defender essa identidade.
Meu primeiro processo seletivo foi para uma fundação que dava bolsas para alunos com rendimento acadêmico ou profissional excepcional. Aos 20 anos, sem grandes conquistas, participava de uma seleção difícil, com diversas etapas. Dinâmica de grupo, testes de lógica, entrevistas individuais e em frente a uma plateia. Ao perceber que tinha chance, entendi que precisava contar minha história melhor. Selecionei os melhores pontos, os sucessos que tinha até ali, minhas características mais fortes. E fui aprovado.
Agora, tinha uma nova identidade. Como membro dessa fundação, a sinalização era de que seria, sem dúvidas, um excelente profissional. Portanto, usava essa distinção com orgulho. E foi ela que me permitiu, por diversas vezes no início de minha carreira, tomar coragem para conversar com pessoas muito mais experientes que, sem o emblema que havia ganho, tinha certeza que não tomariam tempo para falar com um moleque.
Fui aos poucos conquistando alguns outros sucessos profissionais e acadêmicos que me reforçavam o orgulho e a identidade que criava para mim. Sucesso. Até que veio a depressão. Aquilo não era suficiente para me preencher enquanto ser humano. Os parâmetros não eram meus. Precisava me reinventar.
Demorou até conseguir me orgulhar de quem sou. E nem todos os dias me sinto dessa maneira. Os rótulos colocados sobre mim me fazem me sentir bem com minhas conquistas. Mas também foram os que me fizeram cair sob seu peso. Até que entendi que são apenas alguns dos elementos que me formam.
O processo de busca pela libertação dos rótulos vem a partir de um hábito: a desconstrução contínua de minha própria trajetória. No momento em que você vive algum fato, não está capacitado para entendê-lo. A racionalização e compreensão vêm depois de uma reflexão. Mas nem sempre nos permitimos refletir. Estamos muito ocupados correndo. Apenas a partir da desconstrução de nossa trajetória e da reconstrução intencional desta, é possível moldar nossa identidade de forma a alcançarmos quem queremos ser. Para isso, uso duas ferramentas que me dão a estrutura que necessito para esses raros momentos de pausa.
Uso-as em diferentes contextos. Quando considero que terminei um ciclo de aprendizado e quero consolidá-lo. Quando preciso falar em público sobre o que tenho feito até aqui. Quando passo por algum breakdown emocional. Ou quando simplesmente estou confuso.
Todos esses momentos são sinais de que é necessário refletir. Para isso, as Memórias que me Definem e o Ciclo de Kolb são fundamentais.
Memórias que me Definem é um exercício explícito de construção da narrativa de si mesmo. Ele funciona da seguinte maneira:
1) Desenhe seis quadrinhos
2) Reflita sobre quatro pontos em sua vida que considera Memórias que te Definem. Essas são memórias que são extremamente vívidas. Quando você se lembra delas, consegue sentir como se estivesse vivendo-as agora. E você consegue entender que são fundamentais em sua existência. Então desenhe/escreva elas nos quatro primeiros quadrinhos. Vou dar meu próprio exemplo:
Sem entrar em muitos detalhes, os primeiros quatro quadrinhos são:
a) Minha mãe comigo, aos nove anos gastando horas a mais do que o necessário assistindo filmes em inglês, com legenda em inglês, para poder me estimular a aprender.
b) Eu dando minhas primeiras aulas em um projeto social chamado PCS.
c) Minha depressão.
d) Minha transição do fundo de investimento que trabalhava para dirigir uma escola.
3) Após, desenhe o sexto quadrinho. Isso mesmo, pule o quinto. No meu caso, é o equilíbrio (sim, isso é uma balança) entre minha vida pessoal, minha futura família e o trabalho. Não dá pra entender o que é que está ali e não é pra entender mesmo… Mas é o sonho grande que tenho para a área que estou desenvolvendo hoje em dia na empresa em que trabalho.
4) E agora, o quinto quadrinho: o próximo passo para alcançar o que deseja no futuro. No caso, eu e minha esposa de um lado e a área que estou começando a construir de outro. A busca pelo equilíbrio que estamos empreendendo agora.
O que mais importa nisso tudo não é o desenho final em si. Mas entender a conexão entre o que te trouxe até aqui e o que você almeja no futuro. É isso que te fortalece na busca pelo alcance do próximo passo. Porque você encontra sentido nele ao refletir sobre o porquê de estar fazendo o que está fazendo. E pode ser que descubra que não está fazendo o que deveria. Hora de mudar de rumo.
No meu caso, ao contar minha história por diversas vezes, a modifiquei continuamente. Os quadrinhos atuais contam a história de alguém que teve a oportunidade de ter em família uma educação extremamente personalizada e carinhosa. Que teve a oportunidade de tentar fazer o mesmo por seus alunos como professor. Que passou por momentos de sofrimento e vulnerabilidade, mas soube extrair aprendizados destes. Que viveu uma transição profissional difícil, mas que o trouxe para um caminho que o permitiu buscar impactar outras pessoas escalando o que pôde ter em sua própria experiência educacional. Que por tudo isso busca construir uma educação que se importasse mais com a saúde mental e emocional dos alunos. Que está tentando encontrar o equilíbrio entre sua vida pessoal e profissional para que possa ser um bom pai, marido e profissional. Que não quer deixar de viver seus grandes sonhos profissionais mas quer estar sempre presente para sua família. Como sua família foi para ele.
A capacidade de incluir em minha história a depressão é recente. Contei muitas vezes a história sem qualquer ponto de fracasso ou vulnerabilidade. Até que comecei a incluí-la e a ressignifiquei como uma etapa extremamente importante em meu desenvolvimento. Ao começar a contar minha trajetória incluindo minhas dores consegui ver a aceitação e empatia dos outros. Isso permitiu que reconstruísse minha autoconfiança e autocompaixão, me conectasse com mais pessoas e continuasse minha evolução.
Mais recente ainda é a inclusão de equilíbrio como um elemento fundamental do que desejo para meu futuro. Onde busco equilibrar as diferentes facetas que quem estou. Por tempo demais, considerava a busca por equilíbrio como oposta a uma busca por sucesso. Entendo hoje que meus sonhos profissionais não são nada sem saúde física e mental. Parece óbvio mas ainda estou aprendendo. E continuo frequentemente reescrevendo minha história.
É um fato no entanto, que na parte das artes gráficas ainda vou ter que desenhar muito pra poder observar uma evolução concreta…
O Ciclo de Kolb é uma representação da forma como aprendemos criada pelo teórico de educação David Kolb.
Resume-se em quatro passos o processo pelo qual passamos para realmente internalizar nossos aprendizados. A partir de uma experiência concreta, refletimos sobre nossa experiência. Com essa reflexão, conseguimos criar um novo conceito em nossas mentes. Aí podemos experimentar de forma ativa, conseguindo concretizar esses aprendizados. E continuamente iterando a partir de experiências, estudos, leitura, prática e teoria juntam-se para formar conhecimento e, potencialmente, sabedoria.
Ao longo de minha vida, por diversas vezes usei essa teoria para me reorganizar nos momentos em que sentia que tinha algum conhecimento que queria aterrissar e compartilhar, mas estava com dificuldade. Nesses momentos que escrevo textos, faço apresentações de Power Point ou simplesmente rabisco algumas ideias e conceitos. Nesses momentos, por vezes paro e redesenho meus seis quadrinhos. Enxergo novas memórias que se formaram ou novas formas de ver minhas experiências que redefinem o que quero e, portanto, o que devo fazer a seguir. Redefinem o próximo passo certo a tomar.
E o que isso tudo tem a ver com a formação de minha identidade?
A junção do Ciclo de Kolb com as Memórias que te Definem permite um mecanismo para reflexão como hábito que te ajuda a enxergar de onde veio, para onde está indo e, se necessário, ajustar o rumo.
Alguns momentos, como descrevi anteriormente, demandam pausa. Em geral, são quando estamos mais confusos, com as ideias desestruturadas após algum terremoto que mexeu com o fundamento de como nos entendemos. E por isso mesmo, a existência de uma estrutura ajuda.
Nossa vida não é linear. Nossa existência é marcada por momentos conturbados. Buscamos na maior parte das vezes correr destes momentos pois, de algum modo, nos condicionamos por definições de terceiros sobre os rumos que devemos tomar.
Mas os caminhos pré-definidos por muitas vezes não conversam com nossa trajetória. Não conversam com as facetas que nos formam, as experiências e pessoas que nos moldam. E portanto, não podem conviver com a história que queremos contar. Só nós mesmos podemos contar nossas próprias histórias. Mas assumir esse protagonismo demanda esforço.
Esses mecanismos me ajudaram a simplificar esse esforço. A partir da criação de uma sensibilidade da demanda de meu corpo e mente por ajustes de rumo, passei a poder conceber e direcionar minha trajetória de uma forma mais intencional.
Lógico, nunca controlaremos todas as variáveis. E buscar fazê-lo também não é saudável. Ao tentar buscar controlar todos os detalhes sobre quem se é, não deixamos espaço para reconhecermos os fracassos e o sofrimento que te indicam a necessidade de reflexão.
A variação é a única constante em nossa existência. Aprender a valorizá-la e se apropriar com carinho destas mudanças é a única forma que conheço de buscar uma evolução contínua em busca de quem quero ser.
Por hoje. Porque amanhã, provavelmente entenderei minha trajetória de outra forma. Meus sonhos serão outros. Será a hora de mudar, mais uma vez, meu sexto quadrinho.