#Confúciotemrazão
A crise que vivemos atualmente, trouxe no início uma ilusão de igualdade. Em um mundo onde os mais atingidos inicialmente foram os ricos, onde a Europa e Estados Unidos sofrem com uma quantidade de mortes muito superior a países africanos, os mais revoltados com as desigualdades sociais, por vezes expressaram falas que pareciam quase comemorar uma potencial justiça cósmica. Algo que me incomodou profundamente. Por dois motivos. O primeiro é que essa pretensa igualdade era falsa. O segundo é que essa raiva e angústia que leva quase a uma sensação de felicidade pelo tormento alheio tem mostrado sua face feia cada vez mais em um mundo polarizado.
Em um mundo em crise, aproveitei para refletir sobre o que é ética. Quando o mundo vira de cabeça para baixo, para os privilegiados como eu que podem se dar ao luxo de parar e pensar, é hora de nos entendermos enquanto indivíduos. E enquanto sociedade.
2500 anos atrás, Confúcio elaborou pensamentos extremamente relevantes para nosso mundo atual. Para o filósofo chinês, a ética se faz na prática. A cada vez que era perguntado sobre “o que é o Bem” dava respostas diferentes. Era sua forma de ilustrar que o Bem é contextual. E que devemos aprender as lições que levam a uma vida bem vivida da única forma possível: vivendo.
Dentre as inúmeras ilusões humanas, está a de que somos capazes de isolar o racional do emocional. Que conseguimos nos ater a fatos universais, refletir tranquilamente e chegar a conclusões moralmente aceitáveis por todos no nosso cotidiano. Aí acontece a vida.
Para Confúcio, a única forma real de alcançarmos o Bem é refletindo sobre nossas ações cotidianas. Ao viver e tomar decisões, precisamos nos forçar a reconhecer nossos erros. Reconhecer nossos vieses e como nossas experiências prévias, genética e contexto moldaram quem estamos e portanto, as ações que somos capazes de tomar. Ser bom é resultado de um esforço proativo, um treinamento constante para atingirmos um estado onde conseguimos deixar de reagir ao mundo e passamos a responder de modo proativo de forma ética.
Para Confúcio todos nós nascemos com essa incrível capacidade de sermos bons. De entendermos o que isso significa e agirmos de acordo. Mas para conseguir alcançar isso, precisamos de rituais para alcançar bons hábitos. Um que estou tentando cultivar em mim é refletir de acordo com o modelo mental de John Rawls, o Véu da Ignorância.
O filósofo John Rawls descreve em seu livro “A Theorie of Justice” de 1971 um exercício mental que pode nos ajudar a alcançar o Bem como Confúcio descreve.
Imagine que você tem poder para influenciar a criação das normas que regem uma nova sociedade que será feita a partir de uma base zero. Nada existe e agora você é o arquiteto dessas novas relações humanas que se darão. Mas há um porém. Você não faz ideia de como você mesmo será. Ao passar pelo Véu da Ignorância e entrar no mundo que você construiu, poderá ser qualquer coisa: homem, mulher, hétero ou homossexual, branco, negro, asiático, pode ter alguma deficiência, inteligente ou não tanto, rico ou pobre… Como você desenharia esse novo mundo? É de seu interesse construir um mundo equânime, certo?
Lindo né? Mas pouco prático. Será? Se conseguirmos incutir em nossos hábitos mentais uma reflexão sobre o Véu da Ignorância ao tomarmos decisões privadas, estaremos nos movendo em direção ao estado mental almejado por Confúcio. É provável que sua decisão tenha sido tomada por uma reação. É certo que foi tomada a partir de seus vieses, muitos deles inconscientes. Mas não deixe para trás suas ações. Reflita. Elas fariam sentido se considerássemos o Véu da Ignorância?
Em nível macro se conseguimos fazer isso em nível de política pública elaborando um pacto social mais ético, estaremos alcançando uma sociedade mais justa. Mas se cada um tem uma opinião, uma experiência, como sabemos efetivamente o que é bom? Existe alguma forma de objetividade nesse aspecto?
Podemos ser ainda mais práticos ao considerarmos o papel da ciência moderna nas decisões morais. Em nível micro, precisamos entender o que é bom para nos esforçarmos na direção certa.
O filósofo e neurocientista contemporâneo Sam Harris traz para o nível científico a discussão filosófica do que é o Bem. Em sua visão, somos capazes de delimitar de forma objetiva estados físicos e mentais que trazem boas sensações e más sensações. E, portanto, devemos nos esforçar para criar os bons e limitar os maus o máximo possível. Sim, seres humanos são diferentes, têm gostos e experiências diferentes. Mas ao refletir sobre os estados médios objetivos bons, temos regras claras para tomada de decisões e ações em nosso andar pelo mundo.
Temos agora, um modo prático de olhar para nossas ações e refletirmos. Podemos ao nos deparar com a complexidade da tomada de decisões com ambiguidades éticas ou mesmo as pequenas ações cotidianas, nos esforçar para analisá-las sob a ótica do Véu da Ignorância. Podemos entender que existe objetividade científica no Bem e buscar alcançar a compreensão sobre essa verdade. E se fizermos isso de forma recorrente, podemos alcançar o estado almejado por Confúcio.
É uma dor e um alívio colocar em perspectiva que as conclusões desse filósofo chinês foram alcançadas 2500 anos atrás e se mantém tão atuais. Sempre fomos capazes de alcançar essa sabedoria. Ainda somos e sempre seremos.
Mas recorrentemente caímos na armadilha mental de imaginar que temos as respostas definitivas sobre o que é o Bem. Isso está escancarado por todos os lados em nosso mundo polarizado. A visão de que um ou outro lado de um espectro político tem o monopólio da compreensão de uma verdade universal sobre o que é o Bem é um dos grandes problemas de nossa sociedade atual. Enquanto não entendermos que todos somos capazes de fazermos o certo, continuaremos na eterna luta por estar certos. E não na luta diária por sermos bons.